creative director, copywriter

Crônicas

Minha pátria é minha língua

Mesmo depois de quase três anos a morar em Portugal, volta e meia minhas conversas com portugueses travam em uma palavra ou expressão. Usamos a mesma língua, mas as diferenças aparecem nos detalhes. Como no dia em que falei sobre fazer um mutirão e tive que explicar que o termo que vem do tupi significava um nobre esforço conjunto das pessoas para alcançar um objetivo. Ou que muvuca é uma reunião ruidosa na língua bantô.

Gosto muito do sotaque português e de sua maneira de esconder as vogais e dar ênfase às consoantes. Mas gosto ainda mais da babilônia de variações que Lisboa oferece aos ouvidos na mescla do português falado na Europa, na África e no Brasil.

Gosto da alegria que a cabo-verdiana me recebe no bar do Ginásio Clube Português a imitar meu jeito de falar, mesmo que ela soe paulista e eu seja gaúcho. E que, vejam só, ela pareça mais brasileira quando fala com seu sotaque nativo do que quando tenta emular o “brasileiro”. Gosto do falso carioquês malandro do professor lisboeta de skate do meu filho. Encanta-me quando surge um “caiu a ficha” em uma conversa com nativos portugueses, mesmo que muitos não saibam que nem usa-se mais a tal ficha e que ela só existiu nos antigos telefones públicos do Brasil. Ouço nas conversas na rua falarem de pipoca, amendoim, soco, cutucar; samba, cafuné, quitanda; palavras que só existem porque os indígenas brasileiros e os escravos africanos deram-nos uma linda e fundamental contribuição na reinvenção do português.

E é bonito de ouvir os colegas portugueses da escola a chamar meus miúdos de mano, que vem de hermano, que vem do espanhol dos pampas - termo que significa planícies em quechua, a língua dos indígenas dos Andes.

A riqueza que África e Brasil proporcionaram à Portugal não é apenas material. O português é uma língua viva porque, a cada onda de novos falantes, mais oxigénio ela ganhou para crescer saudável, criativa e resistente ao tempo. Foram os povos originários, os escravos, os colonos e os imigrantes que trouxeram à ela um universo de cores e sons que apenas a diversidade permite. Só as vogais abertas que alegram nosso jeito de falar tornaram possível à música brasileira, que os portugueses tanto apreciam, falar com alegria dos assuntos mais tristes do amor e da existência.

Quando o Marquês de Pombal, então primeiro-ministro português, proibiu no século 18 o uso e o ensino do tupi no Brasil e decretou o português como língua oficial, por certo não sabia que, por linhas tortas, estava a reinventar a língua-mãe. E essa foi muito mais generosa do que ele com a riqueza cultural da expressão dos diversos povos que hoje a utilizam. Tão generosa que, sabiamente, transformou a palavra pai, masculina, em pátria, feminina, mãe que abraça todas as raças, todos os sotaques e todas as cores que fazem o português ser uma das línguas mais bonitas do universo.

Saul Duque4 Comments