creative director, copywriter

Crônicas

Cuidado com o panelão do céu

Quando eu era pirralho, ouvi uma história assustadora feita para fazer criança comer tudo o que está no prato. É a lenda do panelão do céu. 

Dizem que na entrada do céu há uma enorme panela esperando pela sua chegada. Toda vez que você deixa alguma sobra no prato, é feito um upload automático do alimento que você rejeitou para o panelão do céu. O conteúdo é cumulativo, tudo que você vai deixando de comer vai direto para o panelão. Bife de fígado, salada de chuchu, dobradinha, suflê de espinafre e outras heranças da sua infância; a metade que sobrou do décimo doguinho, as alcaparras do molho da sua tia e os verdes moles e escurecidos do xis salada provenientes da sua adolescência; todos os excessos do bufê livre que você não conseguiu comer e os salgadinhos gourmet de inúmeras festas, recepções e casamentos que sua gula visual fez você colocar no prato e abandonar. Todo esse conteúdo gerado pela sua falta de avaliação ou critério vai parar no Panelão do Céu.

O terror com as crianças consiste no seguinte: antes de entrar no céu você tem que comer tudo o que tem no Panelão. Na verdade, o terror é duplo, pois não só os alimentos são uma espécie de seleção dos piores de todos os tempos segundo o seu próprio critério pessoal, mas também estão juntos, provavelmente sendo constantemente misturados por um anjo caído, resgatado das camadas mais profundas do inferno.

Imagine que a internet é um grande panelão. Lá, todo o conteúdo gerado por bilhões de CPFs e CNPJs é constantemente misturado sem o menor critério. Assim como na culinária, as tendências vêm e vão. Uma hora é o purê de mandioquinha, outra, o Isso a Globo não mostra. O Temaki sai dos restaurantes japoneses e vai parar nas churrascarias de posto de gasolina. O Facebook deixa de ser bacana e descolado para virar o espalhador de fake news.

Palavras, pensamentos e ações que constroem a presença de alguém na rede não são apagadas jamais. É tinta de caneta bic azul na roupa colorida: até sai, mas fica uma mancha esbranquiçada. Por mais que a internet e, principalmente, as redes sociais sejam territórios de livre-pensar, ao mesmo tempo não se pode pensar que dá pra fazer qualquer coisa sem esperar consequências. Políticos populistas sabem que eu estou coberto de razão.

Há um princípio universal de causa e efeito que diz que nossas ações, positivas ou negativas, acabam voltando para nos afetar no futuro. Cabe a cada um usá-las como lições de vida, saindo do episódio melhor do que entrou. Informalmente, esta é a definição de karma.

Digo isso porque a velocidade dos acontecimentos e o acumulo de registros e impressões que pessoas e marcas já têm nas redes sociais - são pelo menos 25 anos de uso intenso - estão definindo como nunca o estado de espírito de nações. E, por consequência, de seus cidadãos. Nunca, em nenhum momento da história, meio e mensagem se tornaram tão líquidos e influenciaram em escala global e absurda uma época.

A dica vem lá da nossa infância é: preste atenção ao panelão do céu. Ele é a prova de que nossos pais eram especialistas em redes sociais antes mesmo da internet existir. E conselho de pai a gente não despreza. Muitas vezes eles são oferecidos quando você ainda não tem a maturidade para aproveitar. Mas em algum momento da sua vida ele vai fazer um enorme sentido na sua vida.

Saul Duque1 Comment